Grãos da vida
Na choupana havia dois cômodos: um deles era um minúsculo quarto onde a velha cama estava coberta com o surrado cobertor colorido e, na única janela feita com tábuas rústicas, uma tramela fazia a segurança por trás da cortina transparente pelo excesso de uso.
Apoiada em uma prateleira que ficava em frente à cama a pequena imagem da Santa Negra vigiava o ambiente e, uma luz amarela escolheu um dos tantos buracos na velha parede de madeira, para invadir o cômodo, clareando sua intimidade.
No outro cômodo, a cozinha, pendurado num canto, um pequeno caixote guardava as poucas panelas que assistiam ao movimento da anciã: uma caçarola de ferro, uma panela de barro com a tampa trincada e uma pequena tigela em madeira escurecida.
A chaleira de ferro fumegava sobre o rústico fogão à lenha enquanto o cheiro do café exalava no silêncio do ambiente que só era quebrado pelo canto do galo garnisé anunciando o nascer do dia enquanto ela, sem pressa, escolhia os feijões.
Suas mãos eram escuras, com veias salientes que mais pareciam com pequenos caminhos de rios, ou ainda, nervuras de árvores desenhadas pelo tempo. Com a cabeça baixa, coroada com os fios brancos, lentamente, ela escolhia os grãos de feijões.
Não sei por quanto tempo a menina ficou a observá-la, talvez, encantada ou ainda, intrigada e... ela escolhia os feijões. Apontando para o toco que servia de banco, convidou:
-“Senta minha filha!” Então a menina se aproximou, lentamente, olhando mais de perto a tarefa que ela executava.
-“Tá vendo esses montinhos? Cada um tem sua importância e suas diferenças”. E explicou:
-Escolher feijões é como escolher a vida. Tudo é bom dependendo da hora e de como a gente usa as coisas. E continuava a escolher os feijões!
-Neste punhado, apontou ela, tem só feijão inteiro; neste outro tem as metades e neste outro punhado, tudo o que não é feijão. Muitas vezes a gente precisa fazer escolhas e não sabe como. Se precisar de uma solução rápida pode cozinhar as metades dos feijões, dão bom caldo e matam a fome, porém, não podem ser plantados porque não germinam, e isto seria um trabalho inútil. Se precisar adubar a terra tudo serve, até as metades, as casquinhas e os pequenos pedaços de rochas, as lagartinhas, as formiguinhas e tudo o que se utilizou do feijoeiro para sobreviver.
A menina escutava atentamente pensando que nunca havia percebido os feijões daquela forma; para ela eram apenas grãos que vão para a panela. A anciã continuava a escolher os feijões...
-Mas se precisar de coisas que durem para além de matar a fome, pegue dos seus melhores feijões, aqueles inteiros e, guarde um punhado para plantar no futuro. Não coma todas as suas melhores sementes, plante algumas e, a cada colheita reserve um punhado dos melhores grãos. Assim, deve ser na vida, escolha as melhores oportunidades e, então plante os seus melhores grãos deixando o que não lhe serve para trás, para virar adubo. Tudo serve, é só saber olhar e nem tudo a gente pode colocar na panela da vida! E ela continuava a escolher os feijões!
Quando acordei, tive a certeza de que havia me encontrado com a vó Maria, outra vez! A avó que nunca conheci porque morreu com um tiro no estômago ao reivindicar seus direitos em uma sociedade racista.
Para a raiz do meu embondeiro
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Sandra Lee dos Santos Ribeiro