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Relato de Experiência

 

Os passos de MARIA, furando a barreira do Sistema.

Compartilharei um pouco da minha história de vida, na esperança de que minhas vivências possam servir de referência para outras pretas que estão aí nessa caminhada chamada vida. Sou Mulher, Negra, Quilombola, nascida no interior do município de São Lourenço do Sul - RS. Venho de uma família numerosa, composta por dez irmãos, contando comigo. Minha vida não foi um mar de rosas, mas erámos felizes diante do pouco que tínhamos.

Conforme o tempo foi passando e eu tive que sair do seio familiar para frequentar a escola, foi então que começou o meu tormento, aos 6 anos de idade, sendo a única criança negra da escola. Na época as classes escolares eram aquelas conjugadas de madeira. Lembro-me como se fosse hoje que no meu primeiro dia de aula ninguém quis se sentar ao meu lado. Fiquei muito triste, sem entender por que era preterida por toda(o)s. Mas tudo bem! Hoje percebo que não tinha como uma criança de 6 anos ter a percepção do racismo que havia sofrido logo de cara.

Os dias foram passando e só aumentava a não aceitação da minha pessoa pelos outros. Além de continuarem não querendo sentar-se ao meu lado, na hora do recreio não era convidada a participar das brincadeiras e quando me voluntariava era barrada. Sem contar os apelidos “carinhosos”: nega fedorenta, cabelo de bombril, picumã (fuligem do fogão a lenha), entre outros tantos. Até hoje dói bastante, só de lembrar. São feridas abertas que, infelizmente, não cicatrizaram. O fato é que a sociedade em que vivemos tem um compromisso racista para que isso não aconteça.

Aos nove anos de idade meu pai veio a falecer e minha mãe, sem opção, teve que vir morar na cidade. Seria melhor para conseguir trabalho e também para os estudos dos filhos, em especial eu e meu irmão, que somos os mais “moços”, já que os mais velhos muito pouco puderam frequentar a escola. Estava tudo confuso na minha cabeça, uma mistura de dor pela perda do pai e a mudança para cidade. Porém, a única opção que restava era a adaptação a essa nossa vida.

Já na cidade, então fui matriculada em uma escola estadual que ficava no centro. Segundo indicações de amigos e parentes próximos, não seria bom me colocar em uma escola do bairro. O argumento era que a escola da vila não seria boa, se eu quisesse ser “alguém”. Que irônico, visto que era lá que eu morava!

Nessa minha nova vida escolar, criei uma super expectativa de que teria uma melhor aceitação. Para minha decepção, não foi nada do que imaginei. Era um outro contexto, um novo cenário, mas o racismo continuava lá, acompanhado de muita chacota e deboche – que hoje tem o nome de “bullying”. Aprendi desde então a reagir na força do ódio, quando riam da minha roupa, do meu calçado, material escolar, respondia na violência, na valentona. Foi só assim que consegui o respeito, já que amorosidade estava fora de cogitação. Desse modo passei meu primário inteiro. Não tenho boas lembranças.

No ensino médio, enfim, consegui me encontrar. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Eram pessoas da minha idade ou mais velhas. Quinze anos de idade, hormônios à flor da pele, comecei a namorar e não deu outra, mais uma preta grávida na adolescência. Interrompi os estudos por um período de seis anos. Retornei já com a minha filha maior. Foi com a ajuda de vizinhos e parentes que consegui concluir o Ensino médio. Pensei que era o máximo que poderia chegar. Não conseguia enxergar perspectivas de ir adiante, visto que só havia universidades na cidade vizinha, o que demandaria um custo que estava completamente fora do meu alcance.

Com o passar dos tempos chegaram na minha cidade as faculdades privadas, na modalidade EaD. Foi então que, através de uma política pública chamada ENEM, consegui uma bolsa de 100% e cursei Administração de Empresas, aos 39 anos. Estava muito realizada com essa conquista, mas a vida me preparava algo mais. Nesse mesmo ano, fiz o vestibular para uma outra universidade, dessa vez federal, pública, gratuita! O resultado foi positivo, ingressei no curso, coladinho com o término da outra, até porque não tinha o tempo a meu favor.

Essa universidade, chamada FURG, foi um marco na minha vida em todos os sentidos. Foi nela e através dela que consegui potencializar as minhas discussões sobre negritude. Nela eu fiz minha voz e minha vez, voz essa que muitas vezes foi duramente silenciada por toda uma sociedade, por pessoas não negras que nunca tiveram a empatia de se colocar no meu lugar. Meu empoderamento só se fez crescer, através das minhas falas, ações, articulações.

A compressão ou aceitação de que somos iguais perante a sociedade e devemos ser tratadas(o)s como tal, respeitando uns aos outros, independente de cor/raça, chega a ser quase uma utopia. Sei que tivemos muitos avanços, mas na contramão muito retrocessos também. Práticas como o racismo ou até mesmo próprio bullying podem deixar sequelas para uma vida toda.

Hoje posso dizer que superei muitas coisas, enquanto mulher negra, e algumas poucas ainda estou em processo. Acima de tudo, tenho orgulho de olhar para trás e ver o caminho percorrido e ter chegado aonde cheguei, apesar de todos os entraves que fui encontrando. Sou a única dos dez irmãos com diploma de graduação no ensino superior. REPRESENTATIVIDADE importa, Ontem, Hoje e Sempre!


MARIA ESCARLATE PEREIRA

Negra, Mulher Quilombola, graduada no Curso de Licenciatura em Educação do Campo- FURG, São Lourenço do Sul, Administração de Empresas- UNOPAR, Ativista do Movimento de Consciência Negra - Kizumbi, São Lourenço do Sul. Membra fundadora do grupo de Mulheres Negras- MENE, Artesã Afro quilombola, Educadora Popular, Integrante da comissão de Aferição de autodeclaração 2018 da FURG, Membra da Associação Comunitária Quilombola Coxilha Negra

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