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Pretobrancopretobrancopretobrancobrancopretopretobranco...

Assim estavam naturalmente pintados os fios de cabelo na sua cabeça sexagenária enquanto preparava o café naquela tarde fria. A pequena mesa oval estava coberta por uma toalha branca e sobre ela as duas xícaras colorex, em tom pálido, aguardavam pelo líquido quente e perfumado.

 Para acompanhar o café, alguns sonhos fritavam no óleo bem quente e viravam-se sozinhos para dourarem por igual. No prato ao lado, uma boa porção de açúcar, canela em pó e chocolate aguardava para entrar em ação e envolver os sonhos cada um no seu tempo, talvez imaginando seus momentos: o café, os sonhos e a mistura açucarada.

Conversávamos a respeito de muitas coisas e, também, sobre os nossos sonhos e lembro, ainda, que os seus joelhos eram negros num tom muito diferente da pele do seu corpo: marcas de uma vida toda subjugada, desde menina, trabalhando como doméstica e ajoelhada limpando o chão de muitas casas por onde passou. Costumava comprar produtos manipulados nas farmácias com o intuito de melhorar a “cor dos joelhos” que, aos poucos, iam clareando e fazendo-a esquecer-se do complexo de usar saias curtas.

Quando os pequenos sonhos finalmente aprontaram e foram envolvidos na mistura açucarada então, o café foi servido e nos sentamos ao redor da pequena mesa para continuar a nossa conversa. Nesses momentos muitas recordações afloram e se manifestam em palavras lentas e quase silenciosas. Entre um sonho e uma xícara de café apareceram as confissões e os segredos.

- O meu sonho era aprender a tocar piano! Ela me disse, calmamente enquanto bebericava o café. E completou:

- Trabalhei numa casa onde havia um piano na sala e eu ficava namorando de longe. Mas quando a gente é pobre tem que trabalhar e, imagina uma negra tocando piano?

Fiquei com a minha xícara de café suspensa no ar, emudeci e fiquei olhando os cabelos dela ... grisalhos... pretobrancopretobrancopretobrancobrancopretopretobranco... iguais ao teclado de um piano.


Sandra Ribeiro

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