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Memórias D’Água

     A televisão entrou na nossa família quando eu ainda não havia completado doze anos e, naquele tempo, ter uma TV em casa era coisa de gente rica ou, ainda, de “negra metida.”
     O interessante é que o povo se recusava a completar a frase - negra metida a quê? - em um universo onde a palavra negra era totalmente subalternizada e pejorativa, quase um crime.

     Negra metida a ser gente branca, a fazer coisa de gente branca, a vestir roupa que gente branca vestia, a comer a mesma comida que gente branca comia. Negra metida a ter filha cursando o ginásio, no Instituto de Educação Flores da Cunha, através de seleção e, agora, o cúmulo, negra metida a ter na casa pobre, uma TV Colorado RQ!
     “Isto é muito caro”, “não vai conseguir pagar as prestações”, “o dono da loja vai tomar de volta a TV”, “que loucura”! Mas ela estava lá, a telinha em preto e branco, no lugar nobre da sala simples, sobre um balcão que o pai, lustrador de móveis, ganhou e reformou com muito capricho. Porém, a vida corre líquida por entre as pedras e, o pai se desempregou.

     Então a mãe, a negra metida, anunciou: “da minha casa ninguém vai levar a televisão!” Deste modo, além do trabalho como empregada doméstica e a lida diária, com duas filhas, a mãe foi acumulando “lavados” que a princípio eram poucos, mas, com o tempo tornaram-se treze.
     Dizem que o número treze não dá muita sorte, que pode atrasar a vida das pessoas e, os treze foram pagando, uma a uma, as prestações do carnê da TV. Para alcançar este êxito, muitas vezes, a mãe lavava roupas até às 3h da madrugada, quando o pai ia tirá-la da beira do tanque, em pleno frio do inverno porto-alegrense.

     Durante essas maratonas as peças coloridas eram separadas em montes pretos, cinza, amarelos, vermelhos, rosas e outras cores formando um arco íris sobre um grande plástico estendido no chão!           
     Cada grupo de roupas coloridas era lavado separadamente porque as peças escuras deveriam secar à sombra, pelo avesso, para evitar alguma descoloração indesejada; as outras cores aguardavam pela exclusividade do sabão e do cuidado das mãos geladas pela água fria, que retiravam qualquer vestígio de sujeira dos tecidos.

     Porém, o ritual mais bonito de todos era com as roupas brancas, ensaboadas e alvejadas com água quente e quaradas no pequeno espaço de gramado no fundo do quintal. Elas, as rainhas das roupas, recebiam um tratamento especial com uma água perfumada e tão azul quanto o céu em dia quente de verão: a água de anil.
     E quando o amigo Vento balançava as cordas repletas de roupas, pareciam com as bandeirinhas das obras de Volpi, dizendo adeus à água suja, aos segredos entranhados nas fibras, aos líquidos dos corpos, às sangrias de mulher, aos vômitos dos bebês ou, ainda, ao suor dos amantes.
     
Mas as brancas, as mais belas, essas brilhavam como o manto de Oxalá! 

                                                                                         
                                                                                                  Sandra Lee dos Santos Ribeiro

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